sábado, 26 de novembro de 2011

Vidas Secas

Terra Seca
 

Mas a terra é tão seca, tão seca, que a gente não devia tomar banho todo dia, pelo menos, não com sabão. Porque a pele resseca e pode dar sérios problemas de pele. Temos que manter um pouquinho de óleo na pele.

É tão seca que resseca até o ossos. É verdade! País é campeão também em osteoporose. Até cachorro tem osteoporose. Aquela doença em que os ossos ressecam e ficam quebradiços.

De manhã acordamos com a boca seca, os lábios grudados, a garganta colando. Temos que ter copo com água na cabeceira pra tomar goles no meio da noite ou primeira coisa ao acordar. As secreções do olho cristalizam e viram pedrinhas. As unhas se quebram.


Lábios rachados
Tão bonitinhas aquelas bochechas rosadas das criancinhas na neve, não é? Pois neve é água seca, e as bochechas rosadinhas são na realidade reação violenta ao frio e secura, que faz o sangue fluir para o rosto e enchê-lo de carocinhos vermelhos. Bonito de se ver de longe.

De tão seca que é a terra da Austrália que tudo quanto é plástico resseca com pouco tempo. Nada dura, tudo quebra logo. Crack!

Nem mesmo água resolve. A terra é tão seca, que chupa tudo com grande velocidade. Okay, verdade que não chupa assim tão rápido, e muitas vezes causa enxurrada, mas o tempo seco faz tudo evaporar em minutos, e o resto vai pra dentro da terra. Só que não adianta. Parece que quando chove, a terra fica mais seca ainda, ávida por sugar mais e mais!

O sol é tão quente, mas tão quente, que nos torra rápido! Ficamos vermelhos, ardidos, com marcas na roupa até quando vamos estender roupa no quintal. Só tem uma coisa boa: roupa seca rapidinho. Tudo seca rapidinho, até suas mãos depois de lavadas. Não precisa nem toalha. Economia de toalha.

As crianças têm que usar um chapéu de abas na escola, que tem um véu atrás, para cobrir o pescoço e os ombros.

O tempo seco fere entre os nossos dedos dos pés, guardados nas meias, principalmente quando está frio. O chão fica esturricado, daqui a pouco tem praga de gafanhotos.

De repente, lá atrás da casa, surge um buraco como se fosse toca de timbu. Não é, foi que a chuva cavou embaixo da crosta dura, e um belo dia a crosta arriou, causando um buracão. O chão do quintal vai cedendo, e expondo mais a parede. Daí as pessoas mandam aterrar de novo, nova camada de terra de jardim e quintal.

Com isso as paredes vão se afastando, vão surgindo craques entre as paredes e o chão, entre uma parede e outra, numa quina. A diferença vai aumentando quanto mais quente e seco o ano é com relação ao outro. As portas se separam dos umbrais, o cimento que une os tijolinhos aparente vai se esfacelando, virando areia. Ter casa assim é uma dor no coração. As ervas daninhas comem soltas e nossa vida é só para retirá-las do jardim, porque este é o habitat natural delas. Ervas daninhas com espinhos, as filhas da mãe, nos xingando, “vai embora pra casa, brasileiros de uma figa, aqui não é lugar pra vocês, aqui
é lugar pra mim!”

O sol ardente não tem dó. Estou falando mais de Canberra, pois Sydney tem muita sombra e muita chuva, embora ainda seja seca. É preciso ter vidros escuros no carro ou cortinas. No verão a temperatura sobe acima de 40 graus vários dias, isto em quase toda Austrália. O vento que sopra é quente, nos deixa louca, quanto mais escancaramos as janelas a procura de ar, mais quente fica, derretendo tudo. Manteiga vira líquida, frutas e pão apodrecem mais rápido, e o tempo todo é na fabricação de gelo no congelador. O ar condicionado não dá conta. É hora de usar a banheira que toda casa tem.




Derretendo tudo
O calor parece maior em Recife, quando não é. Aos 30 graus de Recife a gente está suando em bicas. Aqui a gente não sua, não precisa nem de desodorante. Bem, não vamos exagerar…

Por vezes vem uma poeira do deserto e fica tudo marrom. O vento trás a chuva borrifo, e as gotas de água agarram no barro, sujando as casas, as vidraças, os carros, tudo que fica externo. Os carros ficam uma gracinha, tudo pintadinho como umas oncinhas.


Já falei que Sydney um dia ficou vermelha em setembro de 2009, saiu em todos os jornais do mundo.

Tempestade de areia em Sydney
Sydney vermelha
Mas vermelho mesmo ficou foi o céu em 2003, em Canberra.

Fogo no Mato ("Bush Fire")

Foi aterrorizante.

Estávamos passeando no shopping de Tuggeranong quando de repente os auto-falantes mandam a gente pra casa. Ora, difícil de acreditar, será que estão dizendo isso mesmo? Sim, vão logo, apressem-se. E todo mundo pegou seus carros e dirigiu-se para a saída do estacionamento coberto.

Quando saímos na rua, maior susto. Como é que já tinha anoitecido? O que aconteceu? Estava tudo escuro. Acendemos os faróis às 3 da tarde e fomos dirigindo devagar, cuidadosamente como todo mundo, atônitos. O céu estava muito estranho, vermelho e preto em pleno dia. Mas nada de pânico, todo mundo ordeiro, respeitador das leis do trânsito. Estávamos loucos pra chegar em casa e ver se ainda tínhamos casa, pois a fumaça no ar denotava fogo dos brabos.

Só então foi que soubemos que Canberra estava queimando. Cercada de fogo por todos os lados. Minto, só pelo Oeste. Foi uma tarde/noite de agonia para quem nunca passou esse sufoco na vida de ver nossa casa cercada de fogo incontrolável sem podermos fazer nada.


Canberra ardendo em 2003
Bem, podíamos. Soubemos pela TV e rádio o que estava acontecendo. Nosso vizinho nos deu umas dicas de como nos protegermos, e ele próprio subiu no nosso telhado, depois de ter arrumado o dele próprio, para tapar nossas calhas a fim de fazer elas acumularem a água que jogaríamos com a mangueira. Foi um tal de arrumar saco plástico e enfiar toalha dentro pra tapar as goteiras uma a uma. Depois pegamos a mangueira e ficamos alí, regando as calhas, o telhado, as paredes da casa.

O calor tornou-se infernal, e as paredes pareciam que iam assar. Tome água nelas o tempo inteiro. O medo era de que as brasas viessem ainda acesas e tocassem fogo nas plantas do quintal, mas quando elas nos atingiam, já chegavam negras, apagadas, graças a Deus.

O fogo vinha de cerca de 3 a 4 km de distância, das montanhas de Brindabella, de onde podíamos enxergar do quintal de nossa casa. As brasas atravessavam um bairro mais baixo para nos atingir num morrinho mais alto, de onde podíamos ver um grande panorama.




Belissimo, mas aterrorizante...
Um panorama amedrontador. A noite foi caindo e o fogo aumentando. Logo a montanha inteira parecia uma festa de São João, cheia de milhares de fogueiras acesas ao longe. Algumas fogueiras pareciam sair do controle, e o fogo subia em labaredas bem altas. Ora, como vão controlar isso, meu Deus do céu? É impossível, é grande demais.

Preparamos o carro para evacuar. Deveríamos estar prontos para, ao sinal dos alto-falantes da polícia, partirmos com o carro não sei para aonde. Colocamos tudo quanto era de valor, documentos, arquivos, fotos, roupas, no carro e deixamos ele na garagem, a porta aberta, a luz acesa, como todo mundo.

Meu vizinho jogava água na nossa casa, nós jogávamos na dele.


No telhado, deslumbrado e esperando pelo pior
A noite não acabava mais, mas também não progredia.

Em outros bairros de Canberra, o rolo foi muito maior. 470 casas foram torradas, e 4 pessoas chegaram a morrer. Carros foram fritados, animais fugiram feito loucos, bairros inteiros foram dizimados, tudo destruído. A velocidade do vento de repente faz o fogo virar um inferno. Fica tudo escuro, como se fosse de noite, por causa da fuligem, da fumaça, que cobre o sol. As labaredas parecem coisa do diabo.

No outro dia havia melhorado. Saímos de casa para visitar amigos, e vimos o céu dividido no meio. De um lado azul, do outro preto, com a divisão vermelha. Metade do bairro de dia, metade de noite. Um fenômeno da natureza. Os bombeiros conseguiram dizimar o fogo devagarzinho com as técnicas deles, e uma por uma das centenas de fogueiras foram se apagando. A grama ainda vinha queimando ladeira abaixo, e o que era verde ia ficando preto, o chão preto.

Muitas árvores foram queimadas, torradas, destruídas. Grande parte delas morreram. Outra parte começou a brotar meses depois, as folhinhas nascendo nos troncos esturricados, tantas folhinhas que os troncos se tornaram verdinhos, outra maravilha da natureza. Outras árvores foram replantadas, e até hoje ainda não cresceram nem a metade do que deviam. O fogo torrou grande parte da natureza.

Anos depois o povo reconstruiu suas casas. No lugar das casas velhas e comuns, surgiram casas chiques e sofisticadas, graças aos seguros e à capacidade de sobrevivência deste povo, acostumado com o fogo.

Mal chegamos em Canberra, e fomos visitar o Museu da Austrália. Lá assistimos a um filme sobre a Austrália, muito bonito, interativo, em várias telas de alta definição, num palco giratório, um espetáculo audio-visual de alta tecnologia. Mas nos impressionou quando o documentário falou que o fogo fazia parte da vida do australiano. Ora, como pode ser isso? Passamos nossa vida inteira no Brasil, e jamais tivemos medo de fogo, de repente aqui viríamos a ter? Não, acabamos nos acostumando aos rumores de fogo em toda parte, que onde tem clima seco em terra seca com calor e sol ardente, naturalmente que tem fogo. A quantidade de incêndios na Austrália é muito maior do que no Brasil, aqui brincou, ardeu. É tudo ardido. Acho que é por isso que o povo gosta tanto de pimenta…

Mas ainda não morremos incendiados. O fogo realmente faz parte da Austrália. É como se fosse cíclico, necessário. Depois do fogo a terra renasce. Os fogos são monumentais, imensos, tais como em Portugal e na Califórnia. Os incêndios nas florestas brasileiras não parecem tão grandes em comparação. Talvez sejam, mas eram sempre tão longe da nossa realidade urbana.

Naquela semana do fogo que comeu parte de Canberra, meu marido estava de férias. Havíamos organizado uma viagem de carro para Adelaide com as crianças, no sul da Austrália, passando pela Grande Rodovia do Oceano (“Great Ocean Road”), de onde se pode avistar os 12 apóstolos, que são imensas pedras soltas no mar, erodidas durante centenas de anos. Não conhecíamos Adelaide, e era o lugar mais longe que iríamos de Canberra, de todas as viagens que fizemos na Austrália.

Resultado, tivemos que ficar em casa para curtir aquela aventura aterradora e perdemos a semana de férias cheia de preocupações. Depois disso paramos de viajar, chega. As distâncias são muito grandes, e nas viagens costumamos não ver nada, no meio de um vazio imenso. Até porque as estradas costumam passar por fora de todas as cidades, o que lhes dá mais velocidade mas torna a viagem estupidamente entediante. Ver gente e cidade é uma alegria.

Temos amigos que perderam muita coisa, mas pelo menos na época viviam de aluguél. Tiveram que fugir do morro onde moravam, ladeira abaixo, vendo a hora do fogo engolir o carro com a família dentro, os membros da família se perdendo uns dos outros, um caos. Os dias seguintes mostraram as casas arrasadas, jardins destruídos, carros derretidos. Tudo isso em poucas horas, poucos dias.

O governo frequentemente faz queimadas controladas a fim de que incêndios florestais como estes não aconteçam ou não progridam. O governo tinha deixado de fazer isso naquela época. Não deu outra, parece até que ficou feliz daquilo acontecer, só pode. O fogo avançou em alguns bairros que ficam na beira do “bush”, onde a cidade acaba. Comeu muitas casas à beira do “bush”, e saiu comendo as vizinhas também. Umas sobraram incólumes, como sempre, como que protegidas pelo Deus que eles não acreditam. Outras queimavam assim, do nada, no meio de um quarteirão todo inteiro.

Certos tipos de plantas nos jardins favoreciam a casa pegar fogo. Certo tipo de lixo, de sujeira acumulada nos quintais, material das casas, vários fatores favoreceram certas casas serem engolfadas pelo fogo.

Algumas pessoas que tinham dinheiro que não foi queimado, reconstruíram suas casas, ou contruíram outras muito melhores. Dentre estas, conhecemos uma pessoa que colocou esguichos no telhado para da próxima vez que o fogo vier, ele liga o chuveiro e a casa fica lá tomando banho com eles dentro. Ele usou toda a tecnologia mais moderna para escapar dos próximos incêndios, o que inclui até o jeito como os quintais e jardins foram programados.

Anos depois, outro incêndio ainda maior destruiu algumas cidadezinhas do interior do estado vizinho de Victoria, este dia foi chamado “black Friday” (sexta-feira negra). O drama ali foi maior, mais de 750 casas foram devastadas pelo fogo e mais de 100 pessoas perderam suas vidas. A diferença
é que Canberra é a capital da Austrália, uma cidade de tamanho razoável. Inadmissível ter acontecido aquela calamidade numa cidade como esta.

2 comentários:

  1. Tatá, estou adorando suas histórias! Não sabia que a Austrália é um lugar tão inóspito! Há quanto tempo você vive na Austrália? E ainda vive em Camberra?

    bjs

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  2. Oi, vivemos na Austrália a 13 anos, e em Canberra até 2011 por 12 anos quando mudamos para Sydney. E "Canberra" se escreve com "n" antes do "b" porque é uma palavra aborígine, mas não se avexe não, até no site da embaixada brasileira o nome desta cidade está escrito com "n".

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